Trajetórias femininas inspirando a transformação que o mundo precisa
8 de março de 2022
Tempo de Leitura: 13 minutos
“Apesar de ser mulher, até que você é uma boa chefe”. Foi o que Fátima Marques ouviu de um engenheiro quando ela tinha 32 anos e assumia uma posição de gerência em uma multinacional no setor de bens de consumo. “Dei risada e falei que ele ainda ia se surpreender muito com o que estava falando. Uma pessoa que fala isso é alguém com uma visão muito limitada de mundo. Ele estava acostumado a só ver homens ali no meu lugar”, contou Fátima, hoje conselheira, coach executivo e investidora de startups de tecnologias, com passagens por grandes empresas e uma trajetória inspiradora, que começou cedo.
Fátima Marques decidiu tomar a frente da sua carreira aos 15 anos. A família morava em Santo André e o pai trabalhava na Mercedes Benz, em São Bernardo do Campo. Um dia, foi para o trabalho com o currículo de Fátima embaixo do braço. Ela queria uma vaga no banco de crédito Nacional, que atendia os funcionários da montadora. “Não que eu não tivesse medo. Mas o medo não me impedia”, conta. E deu certo.
Passou por várias áreas e outras multinacionais, principalmente no setor de Recursos Humanos, até ouvir o conselho da filha de 12 anos e aceitar a proposta desafiadora para assumir como Head de operações no Brasil em uma consultoria global. “Comentei com ela: ‘será que vou ou não pra essa empresa?’. Ela me respondeu: ‘mãe, você faz tão bem tudo o que faz, fica tranquila!’”. Em pouco tempo, Fátima assumiu a operação América Latina, passou a integrar o comitê executivo e foi convidada para ser sócia. Encerrou a trajetória na consultoria com 400 pessoas e 8 países sob sua responsabilidade. “Escolho muito o que eu gosto de fazer. Não gosto de dizer que eu estou aposentada, me dou ao luxo de fazer o que eu quero, na hora que eu quero. É uma conquista, porque foi a partir da minha trajetória”.
Caminhos profissionais
Os caminhos profissionais foram impulsionados por muito estudo, e também por inteligência emocional, para superar os vários episódios de assédio moral relacionados ao gênero, que ela vivenciou desde o início da jornada. E a maternidade também foi desafiadora. “Foi um choque. Sempre trabalhei fora e me vi dentro de casa tendo que cuidar de um bebê. À época, eu tinha 23 anos, não tinha condições pra ter a ajuda de alguém, e me senti absolutamente incapaz. Sempre me cobrei muito. E sempre se espera que a mulher esteja no espírito maternal, pronta pra cuidar de filhos e da casa”.
“Não é só o lado financeiro. Tem esse lado, mas tem o que você quer pra você, pra sua vida, como quer estar no mundo, influenciar as pessoas que estão à sua volta. Não é só a questão de grana, embora isso sempre foi uma questão importante pra mim, inclusive pra ajudar minha família. Mas sempre busquei algo diferente pelo motivo de expandir os horizontes”.
Hoje, Fátima divide os conhecimentos e as experiências em mentorias voluntárias no Instituto Vasselo Goldoni, uma ação social voltada para impulsionar carreiras de mulheres pelo Brasil.
A resiliência que Fátima precisou ter ao longo de toda a trajetória também é compartilhada por Isabella Freire, codiretora na América Latina da Proforest, uma associação sem fins lucrativos que apoia empresas, governos e sociedade civil na rastreabilidade de toda a cadeia de commodities agrícolas e florestais, para mapear e comprovar a sustentabilidade socioambiental, e políticas de governança.
Atuação pela sustentabilidade
Natural de Brasília, Isabella formou-se em Relações Internacionais e acumula vivências em diferentes países – entre elas, um trabalho intenso com mulheres refugiadas. O mestrado em política ambiental na Inglaterra direcionou a carreira, que começou com um viés “idealista”, como ela conta. Mas que acabou virando realidade, afinal, Isabella faz a diferença para um agronegócio mais sustentável no Brasil.
Começou atuando na ONG Conservação Internacional, onde desenvolvia projetos com produtores e empresas que trabalham com soja, cana de açúcar, pecuária, mineração e turismo. Depois, passou pela WWF (World Wide Fund for Nature), também atendendo as cadeias produtivas da soja e da pecuária. Na Proforest, assessora empresas e ONGs ligadas ao agronegócio a dialogarem e encontrarem juntos os caminhos para garantir a sustentabilidade no setor. Isso se dá através do mapeamento da cadeia de fornecimento, para um processo de compra responsável, de produtos com verificação de procedência não vinculada a desmatamento, trabalho análogo à escravidão, e diversas outras regulamentações e ativos fundamentais para garantir a credibilidade de uma marca ou de um negócio.
A partir disso, Isabella atua no desenvolvimento de políticas de alinhamento aos critérios ESG. “O mercado está mais exigente. Ajudo as empresas a entenderem o quanto estão distantes e o que precisam fazer pra chegar lá, apoiando colaboração. Uma empresa sozinha não consegue fazer nada e a gente entra quando um setor está acordando para a necessidade de ser sustentável e não sabe como fazer isso”.
A trajetória de Isabella também é marcada por episódios de assédio. “Como estagiária, horrível. Muito assédio, muito assédio mesmo. Eu fazendo networking ficava confusa (com o comportamento dos homens): ‘mas isso é networking?’ Naquela época, a gente não sabia direito, nem se falava o que era assédio nesse sentido”. A vivência na Inglaterra mostrou a ela um outro cenário possível. “Senti uma grande diferença. Os homens paravam pra ouvir, não tinha assédio, foi muito importante pra minha trajetória profissional saber como poderia ser. Voltar ao Brasil foi chocante. Já tem uma mudança cultural, mas aqui ainda está engatinhando”.
Isabella conta que ainda enxerga, em alguns projetos, um esforço muito grande que homens têm que fazer para aceitar que ela coordene os trabalhos. “A gente tem que ser muito melhor do que o melhor para provar por que está nesse espaço e para ser ouvida”.
Hoje, ela tem um filho de 2 anos e considera um grande desafio ser mãe de menino, no sentido de trabalhar essa desconstrução de preconceitos. Missão que ela desempenha também no trabalho, ao levar para as empresas um olhar questionador sobre o quadro de funcionários e as vagas ocupadas por mulheres.
“Fazer com que as questões de gênero, os processos que hoje são cegos, sejam, no mínimo, sensíveis e, se possível, transformativos. Garantir que a mulher vai ter o direito de fala, ninguém vai falar em cima dela. Quando a gente está pensando nos padrões e políticas que a gente desenvolve para empresas, a gente pauta a questão de gênero. As empresas têm o dever de olhar pra isso. E o campo também. É fundamental ter um olhar de gênero para o agro”.
Lara Martins é gestora de Causas Coletivas no Sistema B no Brasil. A entidade integra o B Lab, uma organização global que estimula transformações nas empresas para que usem do seu poder de mercado a fim de gerar impacto positivo. A iniciativa opera através de uma plataforma gratuita, em que as empresas passam por uma análise de todos os processos, para conquistar o selo Sistema B, que assegura o cumprimento de fatores ESG, relacionados a governança, condições de trabalho, cadeia de fornecedores, e impactos sociais e ambientais. No Brasil, cerca de 230 empresas possuem o selo. Na América Latina, são pouco mais de 800 e, no mundo, em torno de 4.300.
Filha de funcionária pública e aluna do ensino público, Lara destaca a importância do acesso à educação e a oportunidades ricas para o seu caminho. Estudou no colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, ganhou bolsa social para cursar Publicidade e Propaganda na PUC-Rio, pelo processo de mérito através das notas no vestibular, fez um curso de inglês também com bolsa e conquistou outra bolsa para fazer um intercâmbio em Madrid. “Não cheguei aqui sozinha, existiu toda uma rede de apoio em cada momento da minha história”. Hoje, aos 30 anos, atua com o intuito de retribuir, através da liderança de projetos que transformam a maneira como empresas se relacionam com as comunidades. “Vejo o que posso mudar, o que posso fazer. É uma sensação de devolver”.
No intercâmbio, estudou empreendedorismo e consumo consciente. No Brasil, passou por grandes empresas, tem MBA em projetos, e, no início da pandemia, atuou no Pacto Global da ONU no Brasil, na área de engajamento e adesão, captando novas empresas, fazendo onboardings e gestão dos participantes na rede, de acordo com as ODSs e as ações do Pacto. E aí recebeu o convite para liderar o Sistema B, nas duas bandeiras principais: causas climáticas e justiça social. Recebeu prêmio de liderança consciente do Instituto Anima e foi delegada do Brasil no grupo de engajamento jovem no fórum do G20, em 2021, representando a área de inovação no trabalho.
Na condição de mulher negra, Lara relata que já no estágio, em uma agência de publicidade no Rio de Janeiro, sofreu preconceitos. Mas foram situações que só hoje, com a consciência racial que tem, conseguiu decodificar.
“Sempre estive presente no mercado de trabalho elitista e vejo que muitas oportunidades não chegaram a ser completadas, por questão de ser mulher, de as pessoas não assimilarem a questão de capacidade e liderança (da mulher negra). A gente tem que aproveitar que agora as pessoas estão mais abertas tanto às questões de gênero, como de diversidade e equidade racial. Estou aproveitando essas portas, pra mostrar o que já faço, o meu potencial, e ganhar espaço no mercado”.
Essa visão é compartilhada por Monica Alcantara, Head ESG da Agro Galaxy, empresa de produção e exportação de insumos agrícolas. “Minha dica é que cada profissional encontre seu propósito de vida e coloque sua carreira em função dele, sem perder a sua essência. Especificamente para as mulheres, sugiro que busquem conhecimento, aprendam com as relações e dominem os temas em que precisam ou querem se posicionar”. Com 25 anos de carreira, a maior parte dela em Sustentabilidade Corporativa, Monica relata que ser uma profissional mulher demandou muita confiança e resiliência, “para me posicionar com segurança em temas e fóruns predominantemente masculinos. Esse aprendizado influenciou o meu desenvolvimento profissional”.
E, na trajetória dela, se repete também o preconceito de gênero em relação às capacidades: “grande parte das mulheres, assim como eu, considera que precisa provar muito mais competência, habilidade e conhecimento do que os homens nas mesmas funções. E nesse sentido, essa cobrança de performance ‘adicional’ pode ocasionar estresse e frustração. É importante não cair nessa cilada de tornar a carreira um fardo”.
Ao mesmo tempo em que todas partem de contextos de provação, ou se depararam com eles em algum momento – em diferentes vagas e setores -, elas são protagonistas – e testemunhas – da potência que a diversidade destrava.
“Um ambiente de trabalho mais diverso, com relações saudáveis, amplia as possibilidades de geração valor, trazendo aspectos valiosos para o desempenho das empresas, como inovação e produtividade. Não tenho a menor dúvida que o equilíbrio de gênero nas empresas, principalmente nos níveis de liderança, favorece cultura, governança e gestão com um olhar mais amplo, visão holística do negócio, trazendo outras perspectivas, incluindo a relação da empresa com seus stakeholders e o interesse por temas tradicionalmente não tratados nos planejamentos estratégicos”, considera Monica.
“Posso dizer, por experiência própria, que ambientes corporativos com mulheres na alta liderança, trazem mais inspiração e sentimento de propósito para todos. Na Agrogalaxy, senti uma diferença enorme em liderar a agenda ESG, por estar numa empresa de capital aberto, do agronegócio, que tem três mulheres no Conselho de Administração, duas em C-Level e várias líderes. Minha sensação é que o tema flui com maior velocidade e entra na pauta estratégica sem dificuldade”.
Diversidade e inclusão nos negócios
Sheila Guebara, diretora de Assuntos Corporativos, também destaca o potencial que a diversidade exerce nos negócios. “Investir em diversidade em toda sua pluralidade vai muito além de ser ‘a coisa certa a se fazer’. Contribui diretamente para melhorar o desempenho das empresas, e acredito que a razão seja até simples de explicar. Somos desafiados, diariamente, pelas empresas e pelo mercado, para oferecer soluções a problemas novos e antigos, e ter um time homogêneo – formado por pessoas que pensam igual e tiveram um histórico pessoal e profissional muito similar, reduz muito a visão sobre o problema e o potencial criativo, e a chance de acerto diminui. Diferentes perspectivas aceleram o processo de encontrar uma solução – aliás, inúmeras soluções. Com isso ganhamos tempo, economizamos recursos, aumentamos eficiência”.
A maior parte da trajetória profissional de Sheila foi em times majoritariamente masculinos e ela também sentiu que precisava entregar muito acima do esperado, pela condição de mulher. “Um homem mais jovem que está crescendo e assumindo mais responsabilidades é visto imediatamente como prodígio, brilhante. Muitas vezes, leva mais tempo para reconhecer o mesmo nível de capacidade e competência nas mulheres, especialmente se forem jovens ou parecerem mais jovens do que são. Não foram poucas as vezes em que veio um ‘quem aquela menina pensa que é?’”.
Em 20 anos de experiência, Sheila conta que, para superar esse contexto, “respira fundo” e segue focada nos seus objetivos. “Faço o que preciso fazer e pronto. Também estou sempre disposta a aceitar ajuda dos outros, inclusive e especialmente dos que duvidam da minha capacidade. Entender como usar essas situações a nosso favor é muito importante”.
A Agrotools agradece às cinco mulheres que compartilharam suas trajetórias para que pudéssemos construir esse conteúdo com o intuito de inspirar outras mulheres, e também empresas e setores. Parabenizamos todas as mulheres pelo 8 de março, que, para além de uma data comemorativa, entendemos ser uma data para reflexão e avanços, que partem de todos nós.